XIX. Temperatura das regiões entremarés e a ecofisiologia de Nacella concinna

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A região mesolitorânea (entremarés) do ecossistema marinho antártico é um ambiente bastante extremo, afetado pelo intenso revolvimento do fundo decorrente do movimento dos blocos de gelo que se fragmentam das geleiras durante o verão, ou pelo aprisionamento de detritos e organismos durante o congelamento da superfície marinha no inverno. Vimos em outro artigo desta série, algumas restrições destes ambientes ao modo de vida do molusco lapa Nacella concinna (Fig.1) cujos morfotipos característicos explicam adaptações particulares às condições do meso e do infralitoral (região permanentemente submersa). Também foram discutidos os efeitos da variação de salinidade das águas costeiras rasas, devido ao degelo continental, sobre as respostas fisiológicas dos organismos.

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Figura 1. Molusco Nacella concinna. Fonte: www.oikonos.org

A temperatura é um dos fatores que limitam a sobrevivência dos organismos no ambiente entremarés da Antártida. Além das típicas variações sazonais, as variações diárias de temperatura do mesolitoral podem ser amplas, superando os 5º C, com extremos que chegam aos 18º C, comparativamente às condições mais estáveis do infralitoral, cujos valores oscilam entre -1,9ºC e 1,8ºC. A ampla capacidade de distribuição de N. concinna pelas regiões costeiras rasas impõe desafios fisiológicos relativos ao estresse causado pela variação de temperatura, o que levanta as seguintes questões: existem diferenças ecofisiológicas entre populações de inverno e de verão? Quais seriam as vantagens fisiológicas (tais como disponibilidade de alimento e bioenergética) que compensariam o elevado custo do estresse do mesolitoral, comparativamente ao infralitoral? Seria a região do mesolitoral apenas um nicho vago no qual N. concinna é capaz de sobreviver por tolerar as adversidades físicas?

Estudos de bioenergética têm demonstrado que estes animais apresentam aclimatização sazonal, com “janelas térmicas”, ou seja, faixas de tolerância à temperatura, que diferem entre inverno e verão. Espécimes capturados diretamente das rochas sob a superfície congelada do inverno apresentam dimensões menores comparativamente àquelas capturadas durante o verão, quando a superfície marinha está livre de gelo. Isto provavelmente se deva à melhor capacidade que os indivíduos menores têm de se esconderem entre as fendas das pedras, abrigando-se do gelo, comparativamente às formas maiores, que acabam migrando para regiões mais profundas.

O fator de condição de Fulton é um índice que indica o estado fisiológico do organismo e, em N. concinna, é obtido a partir do produto do volume interno da concha pela massa corpórea úmida do animal sem a concha. Estudos indicam que este índice é maior em animais do mesolitoral amostrados durante o verão, quando a maior disponibilidade de alimento contribui para o melhor crescimento somático, em comparação com animais de inverno. Contudo, o fator de condição de Fulton de animais do mesolitoral sempre se mantém mais baixo em comparação com o de animais do infralitoral.

O estresse nessa região tem diversas origens, tais como os impactos do gelo, a exemplo do congelamento da superfície e da formação do gelo âncora que pode aprisionar os organismos durante o inverno (Fig. 2); as grandes variações de temperatura e também de salinidade, devido ao derretimento das geleiras durante o verão. Além disso, soma-se a estes o estresse causado pela dessecação devido à exposição atmosférica durante as marés baixas. Esses fatores elevam o custo bioenergético para a sobrevivência de N. concinna no mesolitoral e explicam as diferenças entre populações de regiões distintas.

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Figura 2. Vista do fundo marinho de áreas rasas antárticas, com organismos aprisionados no gelo âncora decorrente do congelamento da superfície marinha. Fonte: www.norbertwu.com

Ainda assim, ao se comparar dados de metabolismo entre populações de inverno e de verão, verifica-se que tanto o consumo de oxigênio quanto a excreção de produtos nitrogenados de N. concinna apresentam menores taxas no inverno, em concordância com a disponibilidade de alimento e energia que é menor nessa época do ano. O uso desses dados de consumo de oxigênio e de excreção de amônia possibilitam o estabelecimento de uma relação entre os mesmos, conhecida como O:N (oxigênio:nitrogênio), a qual fornece uma indicação da composição bioquímica do alimento que é oxidado durante a respiração animal, para obtenção de energia. Desse modo, valores entre 3 e 16 são indicativos de uma oxidação essencialmente proteica para obtenção de energia, ao passo que entre 50 e 60 indicam uma mistura de proteínas, lipídeos e carboidratos.

A relação O:N é fortemente influenciada pela composição da fonte alimentar, que pode ser preponderantemente proteica ou com maiores teores de lipídeos e carboidratos, tornando-a mais energética. Embora dependam de uma dieta com predomínio de proteínas, indivíduos de N. concinna do mesolitoral possuem, durante o inverno, uma relação O:N mais elevada do que animais de verão. Isto se deve ao fato de que durante o inverno estes animais ficam, geralmente, dependentes do gelo que se forma nas áreas rasas pelo congelamento da superfície marinha, dispondo como única fonte de alimento as microalgas que crescem no gelo, conhecidas como algas epônticas (Fig. 3). Essas algas são muito ricas em lipídeos, comparativamente às algas bentônicas, mais ricas em proteínas, que constituem a dieta de verão dos indivíduos de N. concinna. Tendo em vista essas características adaptativas, tudo indica que mais do que terem algum tipo de vantagem em termos de bem estar, estes organismos ocupam um nicho ecológico disponível cuja principal vantagem seria a pouca competição com indivíduos de outras espécies. Esses animais permaneceriam nesses ambientes devido à capacidade de suportarem e sobreviverem aos desafios impostos pelo rigor dos fatores físicos da região mesolitorânea antártica.

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Figura 3. Vista inferior da superfície marinha antártica congelada. A coloração esverdeada se deve à comunidade de algas epônticas. Fonte: www.pbase.com

 

Leitura sugerida:

Obermüller, B. E., Morley, S. A., Clark, M. S., Barnes, D. K. A., Peck, L. S. 2011. Antarctic intertidal limpet ecophysiology: A winter-summer comparison. J. Exp. Mar. Biol. 403, 39-45.

 

Autores: Arthur José da Silva Rocha; Marina Tenório Botelho; Maria José de A. C. R. Passos; Prof. Dr. Phan Van Ngan
Coordenador: Prof. Dr. Vicente Gomes

 

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