XIV. Adaptações celulares ao frio.
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- Publicado: Quarta, 04 Dezembro 2013
Como os animais ectotérmicos marinhos antárticos possuem, em geral, um metabolismo baixo, adaptações especiais são necessárias para que eles possam apresentar atividades condizentes com as necessidades impostas pela vida, tais como procurar e capturar alimento, fugir de predadores, reproduzir-se, etc. Em artigo anterior já comentamos que uma das mais importantes adaptações de peixes antárticos é a presença de substâncias que dificultam o congelamento dos fluidos corpóreos. Entretanto, apenas essa diferença não seria suficiente para permitir que os animais antárticos tivessem todas as suas funções fisiológicas com bom funcionamento em águas permanentemente frias.
Sabe-se que a composição de membranas celulares de peixes antárticos é muito rica em ácidos graxos insaturados. Estes tornam as membranas mais fluidas, mantendo, mesmo no frio, a permeabilidade necessária para realizar as inúmeras trocas que ocorrem entre o meio externo e as células. A permeabilidade aumentada, entretanto, gera alguns problemas. Durante a produção de ATP ocorre sempre um certo vazamento de prótons pela membrana. As mitocôndrias de peixes antárticos, com membranas mais permeáveis ao oxigênio, apresentam também o vazamento de prótons mais acentuado. Esse vazamento diminui a velocidade das reações das mitocôndrias e, em princípio, geraria a necessidade de aumentar sua capacidade oxidativa, para manter a produção de ATP na mesma quantidade. Esse fenômeno realmente ocorre em alguns peixes de regiões temperadas durante o inverno.
O maior problema é que a aceleração dos processos oxidativos gera maior quantidade das assim chamadas espécies reativas de oxigênio (ROS). As ROS são uma classe de substâncias como, por exemplo, os peróxidos (H2O2) que por serem muito reativas atacam as estruturas celulares vitais, tais como o DNA, além de danificarem as próprias membranas. Desse modo, para evitar a formação excessiva de ROS em um ambiente que é sempre frio, dados recentes indicam que houve a redução da capacidade oxidativa das mitocôndrias de peixes antárticos, ou seja, a diminuição de produção de ATP de cada uma delas, para contornar o problema do excesso de ROS. Entretanto, o número de mitocôndrias por volume de músculo esquelético aumentou e pode ser mais do que o dobro do que o encontrado em espécies tropicais, principalmente em peixes demersais antárticos de atividade moderada. O aumento de mitocôndrias, entretanto, parece não estar relacionado simplesmente a um aumento da produção de ATP, mas a outros motivos mais complexos, como veremos a seguir.
Muitos invertebrados e peixes antárticos são estenotérmicos, isto é, não suportam grandes variações de temperatura. Alguns deles, principalmente os invertebrados que vivem nas latitudes mais altas, não sobrevivem em temperaturas acima dos 3°C ou 4°C. Os peixes parecem ser um pouco mais resistentes, mas, mesmo assim, não toleram grandes períodos em temperaturas altas (Fig.1). Um dos motivos é, provavelmente, a parada de funcionamento das mitocôndrias devido ao excesso de vazamento de prótons durante a produção de ATP, já que as membranas se tornam muito fluidas, pois não conseguem alterar sua composição. Peixes de regiões temperadas são capazes de modificar a composição das membranas celulares de acordo com a temperatura e possuem a necessária labilidade para, até certo ponto, aumentar o fornecimento de oxigênio para os tecidos quando preciso.
A presença de um grande número de mitocôndrias, com capacidade reduzida, parece estar mais relacionada com a distribuição de oxigênio do que com a produção de energia. Os animais ectotérmicos antárticos parecem não ter a capacidade suficiente para obter e distribuir a quantidade de oxigênio exigida pela maior demanda metabólica, quando a temperatura aumenta. Além disso, no frio, o oxigênio se difunde mais lentamente pelos tecidos. Como as membranas das mitocôndrias tem muita afinidade pelo oxigênio, elas serviriam como fontes de reserva e como fontes de distribuição do gás, o que explicaria a necessidade de sua maior ocorrência.
A composição do plasma de peixes antárticos é também bastante diferente da de peixes de locais mais quentes, pois possui um conteúdo muito menor de fosfolipídios e colesterol, por exemplo. Essa adaptação serviria para tornar o plasma menos viscoso e compensar a presença de outras substâncias como as proteínas anticongelantes, que ocorrem em grande quantidade. A quantidade de células sanguíneas e também a de hemoglobina são, em geral, reduzidas em peixes antárticos chegando praticamente a zero nos peixes-gelo. Essa também seria uma medida para reduzir a viscosidade do plasma em temperaturas baixas e facilitar a circulação sanguínea. Outras adaptações serão tratadas no próximo artigo.
Figura 1 - Pagothenia borchgrevinki, um peixe antártico em sua toca de gelo. Fotógrafo: Norbert Wu/ Minden Pictures/National Geographic Creative, Picture Id: 1160366. Veja mais fotos em: http://www.natgeocreative.com/photography/norbertwumindenpictures
Leituras sugeridas
Guderley, H. 2004. Metabolic responses to low temperature in fish muscle. Biol. Rev., 79:409-427.
Pörtner, H. O.; Peck, L. & Somero, G. 2007. Thermal limits and adaptation in marine Antarctic ectotherms: an integrative view. Phil. Trans. R. Soc. B, 362: 2233–2258.
Autores: Arthur José da Silva Rocha; Maria José de A. C. R. Passos; Prof. Dr. Phan Van Ngan
Coordenador: Prof. Dr. Vicente Gomes