XXXII. Odontocetos (cetáceos com dentes) nos ecossistemas polares

       Os cetáceos são os mamíferos mais bem adaptados ao meio aquático, com representantes em todos os oceanos, certos mares internos e em algumas das grandes bacias fluviais da América do Sul e da Ásia. Formam o grupo mais numeroso e diversificado de mamíferos aquáticos e estão divididos em odontocetos (cetáceos com dentes) e misticetos (cetáceos com barbatanas).

       Os odontocetos incluem o grupo das baleias-bicuda, baleias-piloto, belugas, botos, cachalotes, falsas-orcas, golfinhos, narvais, orcas, orcas-pigmeias e toninhas. Com exceção da cachalote, apresentam tamanho médio e pequeno. Todos os dentes dos odontocetos possuem a mesma forma, sem diferenciação (apenas uma exceção: boto-vermelho), e essa é a principal característica do grupo.

       São predadores eficientes que utilizam técnicas de captura refinadas, possuem dieta diversificada variando de espécie para espécie, mas basicamente alimentam-se de peixes, lulas, polvos e crustáceos. Quando adultos, consomem diariamente cerca de 5% de seu peso corporal em alimento, o que demanda uma busca constante de presas e, de modo geral, cada espécie se distribui e se desloca conforme a disponibilidade de recursos alimentares. Algumas espécies possuem predadores naturais, enquanto outras são predadoras de topo, ajudando a regular o tamanho de populações de espécies de níveis tróficos inferiores.

       Utilizam o sistema sonoro de ecolocalização, no qual são produzidos sons de ampla frequência que se propagam pelo meio aquático e ao atingirem obstáculos retornam como ecos, os quais são percebidos e interpretados com a finalidade de ajudar na navegação, localização do alimento, fugir de predadores e até mesmo atordoar presas através da emissão de sons de alta frequência.

       A migração desses animais ocorre principalmente pela procura de alimentos e reprodução, sendo que muitos desses animais acabam migrando para os mares do Ártico e da Antártida.

       Algumas espécies são endêmicas do Ártico, ou seja, só ocorrem nessa região. Uma delas é a beluga (Delphinapterus leucas) (Figura 1). Essa espécie caracteriza-se pela cor branca, pela ausência de nadadeira dorsal e por possuir um órgão chamado melão, uma área preenchida por gordura na região frontal da cabeça, e possuir o pescoço bastante flexível, o que facilita a captura de presas em águas rasas e a fugir de predadores.

Figura 1: Delphinapterus leucas (beluga). Fonte: https://www.earth.com/endangered-species/delphinapterus-leucas/

       Outra espécie endêmica do Ártico é o narval (Monodon monoceros) (Figura 2) cuja característica mais notável é a presença de uma presa longa e reta, que é um canino alongado presente normalmente apenas nos machos da espécie. Os narvais, assim como as belugas, também não possuem nadadeira dorsal, o que pode ter sido uma adaptação para nadar facilmente sob o gelo. Eles se alimentam predominantemente de espécies específicas de peixes, moluscos, camarões e lulas.

Figura 2: Monodon monoceros (narval). Fonte: https://paulnicklen.com/stills/narwhals/

       Algumas espécies visitam tanto o Ártico quanto a Antártida, como as orcas (Orcinus orca) que apresentam o corpo extremamente robusto e grande, sendo a maior representante da família dos golfinhos (Delphinidae). São considerados os cetáceos de distribuição mais ampla, pois não limitam seu alcance pela profundidade ou temperatura da água. Sua ocorrência acontece principalmente em áreas com abundância de alimento. A orca é o único representante da família Delphinidae que ocorre no pack ice (gelo não permanente).

      Três formas distintas de orcas foram identificadas na Antártida, os tipos A, B e C (Figura 3), com base principalmente no tamanho e forma da mancha branca no olho (eyepatch), diferenças no padrão de coloração e no tamanho dos dentes.

Figura 3: Três formas de Orcas que ocorrem na Antártida: (A-B) tipo A apresenta o eyepatch de tamanho médio orientado horizontalmente e sem capa; (C-D) tipo B apresenta o eyepatch grande orientado horizontalmente e capa dorsal; (E-F) tipo C que apresenta o eyepatch pequeno, inclinado e capa dorsal (Pitman e Ensor, 2003).

       A cachalote (Physeter macrocephalus) é outra espécie que visita tanto o Ártico quanto a Antártida (Figura 4), porém somente os machos podem ser encontrados nessas regiões. As fêmeas vivem em regiões tropicais e subtropicais.  É uma espécie facilmente identificável pela grande cabeça retangular, que representa de 1/4 a 1/3 do comprimento total do corpo.

Figura 4: Cachalote (Physeter macrocephalus). Fonte: https://www.ripleyaquariums.com/canada/category/general-aquarium

       As cachalotes têm um importante papel ecológico, pois contribuem para a remoção de toneladas de carbono da atmosfera anualmente. Isso ocorre porque estes animais se alimentam em profundidade e todas as substâncias excretadas por eles são liberadas em uma forma líquida que se dispersa e persiste próximo à superfície. A concentração de ferro nas fezes deles, muitas vezes, pode ser maior que 10 milhões de vezes a do ambiente. Dessa forma, o ferro excretado fertiliza as águas que são pobres em nutrientes e estimula a produção primária, a qual remove o carbono da atmosfera. Enquanto a bomba biológica transporta os nutrientes da superfície para o fundo, as baleias os trazem de volta, processo também conhecido por whale pump (Figura 5). Não somente as cachalotes, como também outros odontocetos que se alimentam em profundidade e defecam material rico em nutrientes na superfície, como as baleias-bicuda, participam desse processo. Os efeitos combinados da excreção de várias espécies de mamíferos marinhos podem representar uma fonte de matéria orgânica e nutrientes que sustenta o crescimento fitoplanctônico, especialmente em áreas pobres em nitrogênio, fósforo e ferro.

Figura 5: Transporte de matéria orgânica para o fundo (bomba biológica) e para a superfície (whale pump). Fonte: Roman, J., McCarthy, J. 2010. The whale pump: marine mammals enhance primary productivity in a coastal basin. PLOS ONE. doi: 10.1371/journal.pone.0013255

       A baleia-piloto-de-aleta-longa (Globicephala melas) é mais uma espécie encontrada no Ártico e na Antártida. Possui esse nome devido às suas longas nadadeiras peitorais (Fig. 6). Alimenta-se basicamente de lulas, mas pode se alimentar também de peixes demersais. São animais sociais que em geral formam grupos de 8 a 12 indivíduos, mas há estudos que mostram que esses agrupamentos podem chegar a até 150 indivíduos que podem permanecer juntos durante toda vida. Uma população de 200 mil indivíduos foi estimada para a região ao sul da Frente Polar.

Figura 6: Baleia-piloto-de-aleta-longa (Globicephala melas). Fonte: https://www.telegraph.co.uk/news/earth/wildlife/7941031/Divers-capture-smiling-pilot-whale-on-camera.html

       Uma espécie que visita apenas a Antártida é o golfinho-de-óculos (Phocoena dioptrica) (Figura 7). Avistagens são raras, mas indicam que este golfinho possui distribuição circumpolar. Pode ser encontrado tanto em águas costeiras, próximo a ilhas subantárticas, como em águas oceânicas. Esta espécie é uma das maiores de seu gênero (Phocoena), chegando a medir 2,3 m. Tem coloração bem delimitada, com a região dorsal preta e a ventral branca. Possui uma mancha preta ao redor dos olhos que lembra o formato de óculos e possuem dentes pequenos e achatados. Alimenta-se de lulas, peixes e pequenos crustáceos. 

Figura 7: Golfinho-de-óculos (Phocoena dioptrica). Fonte: https://otlibrary.com/spectacled-porpoise/

       O golfinho-cruzado ou golfinho-ampulheta (Lagenorhynchus cruciger) é outra espécie que visita apenas a Antártida (Figura 8). Esses golfinhos comumente são encontrados ao redor do continente e também de algumas ilhas oceânicas próximas à Frente Polar. Podem chegar a 1,8 m de comprimento quando adultos e pesar até 120 kg. Possuem um comportamento de se moverem em grupos com geralmente 5 a 10 indivíduos; entretanto, podem ocorrer em grupos maiores. Alimentam-se de várias espécies de lulas e peixes.  Por serem animais difíceis de serem vistos, ainda não há muitas informações sobre seu estado de conservação e se estão ameaçados de extinção.

Figura 8: Golfinho-cruzado (Lagenorhynchus cruciger). Fonte: https://inpn.mnhn.fr/espece/cd_nom/535444?lg=en

       O Golfinho-liso-do-sul (Lissodelphis peronii) é mais uma espécie que habita a zona subantártica (Figura 9). Seu corpo é comprido e fino e possui um padrão bem marcado de cores preto e branco. O aspecto mais notável de sua aparência é a completa ausência de nadadeira dorsal. Sua dieta é composta de peixes, lulas e crustáceos. Ocorrem em grupos de 2 a 100 indivíduos, mas já foram avistados em grupos de até mil indivíduos e também em associação com outras espécies, como a baleia-piloto-de-aleta-longa. 

Figura 9: Golfinho-liso-do-sul (Lissodelphis peronii). Fonte: http://whaleopedia.org/animalfund/oceanic-dolphins/right-whale-dolphins/southern-right-whale-dolphin/southern-right-whale-dolphin-photos/

       Como visto, além de regularem as populações de diversas espécies, os odontocetos desempenham um papel muito importante na fertilização dos oceanos; porém diversas espécies têm sofrido ameaças como pesca predatória, turismo desordenado, ruído subaquático excessivo, perda de habitat, deposição de poluentes carregados pelo mar, entre outras. Esses impactos podem trazer sérias consequências, especialmente para os ecossistemas do oceano austral, onde há grande deficiência de ferro. Dessa forma, compreender e proteger o ambiente marinho é essencial, pois qualquer mudança pode alterá-lo permanentemente.

Para saber mais:

 

Beneditto, A. P. M.; Siciliano, S.; Ramos, R. M. A.; Cetáceos: Introdução à Biologia e a Metodologia Básica para o desenvolvimento de estudos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, ed. 21, 13 - 35 p. 2010a. cap. 1: Introdução à Biologia dos cetáceos.

https://www.ammpa.org/sites/default/files/files/animalfactsheets/AMMPA-BelugaWhaleFactSheet-Portugese-WEB.pdf

Lavery, T. J.,   Roudnew, B.,  Gill, P., Seymour, J.,   Seuront, L.,     Johnson, G.,   Mitchell, J. G. and Smetacek, V. (2010)         Iron defecation by sperm whales stimulates carbon export in the Southern Ocean. ,        Proc. R. Soc. B 22, vol. 277 no. 1699, 3527-3531 .

Lowther A. D. (2018) Antarctic marine mammals. In: Wursig B, Thewissen JGM, Kocacs KM (eds) Encyclopedia of marine mammals, 3rd edn. Academic Press, New York, 27–32.

Pitman, R. L., Ensor, P. (2003) Three forms of killer whales (Orcinus orca) in Antarctic waters. J. Cetacean Res. Manage. 5(2):131–139.

Autores:

Leticia Palmeira Pinto

Patrícia Müller

Raphael De Lucca Marcello Jarcovis

Coordenador: Vicente Gomes – IOUSP

23/7/19

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